COVID-19 Ou A Fome

Cleverton Linhares
4 min readMay 7, 2020

Se tornou um ato comum assistirmos o noticiário e, toda vez, sermos confrontados com o fato de que a adesão das pessoas à quarentena ainda está em menos da metade. São Paulo, por exemplo, raramente bate os 50%, quase sempre a coisa fica na casa dos 47 ou 48. O problema é que nossa indignação, na maioria das vezes, está direcionada às pessoas erradas, já que cobramos da parcela errada das população.

Dia cinco de maio, o Maranhão decidiu tomar uma atitude radical e decretou o lockdown na capital do estado. Em teoria, não era para ninguém sair de casa a não ser por motivos estritamente necessários. O Jornal Nacional mostrou a realidade da cidade: o centro de São Luis completamente deserto, enquanto o mesmo não podia se dizer das regiões periféricas, onde feirantes comercializavam seus produtos, comércios não essenciais abertos e o povo se aglomerando nas ruas.

Realidade não muito diferente pode ser vista no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro. O local é o que concentra o maior número de casos no estado, e mesmo assim estes números parecem não abalar a rotina diária da população local. E é bom lembrar, Campo Grande também é região periférica.

No epicentro da pandemia, o governo de São Paulo, em conjunto com a prefeitura da capital, decretou o bloqueio das principais vias da cidade, com o objetivo de causar propositadamente um caos no trânsito, acreditando que essa atitude desmotivaria as pessoas a saírem de suas casas. Foi um fracasso, pois além de prejudicar os profissionais de saúde que precisavam correr para os hospitais, a população se negou a ficar em casa, pois, afinal de contas, o paulistano precisa trabalhar e levar comida para casa.

A esses três exemplos, somam-se as enormes filas nas agências da Caixa Econômica Federal para o saque do benefício prometido pelo governo. E algumas cenas são estarrecedoras; não importa se está chovendo de alagar as ruas ou fazendo um calor de rachar asfalto, lá estão, me arrisco a dizer, centenas de pessoas atrás de uma merreca para passar o mês. E digo merreca porque R$1200,00 no Brasil de hoje não dá pra bancar o mês de uma família até o final. Ainda assim, pessoas inclusive dormem na porta das agências esperando a oportunidade de receber o que, talvez, represente mais do que se ganharia em um mês normal.

Está muito claro que um dos grandes problemas que ocasionam a falta de adesão à quarentena é a pobreza, afetando as pessoas de diversas formas. E aqui não estou me referindo ao miserável; talvez você que esteja lendo esse texto se encontre na realidade que irei descrever aqui e me dê razão. Eu tenho exemplos dentro da minha casa pra provar isso.

Como que você pede para uma pessoa pobre ficar em casa sem prestar um mínimo de assistencialismo para que ela possa se sustentar durante a crise? Do trabalhador informal ao CLTista que mal ganha dois salários mínimos, essa gente não tem capacidade de fazer uma reserva de dinheiro a longo prazo. O caso do empregado formal gera até um complicador, pois pode ser que depois da pandemia, esse sujeito nem tenha emprego. Daí ele fica em casa, não consegue ter dinheiro para comprar comida para sua família e quando a pandemia passar e as coisas começarem a voltar à normalidade, ele é o mais novo desempregado do país.

E quanto ao seu Quincas da loja de ferragem? O serviço dele, nesse momento, não é essencial, então tem que fechar as portas. Mas se ele fechar as portas, vai viver de que, já que o governo não está afim de assisti-lo? Afinal de contas, assistencialismo é coisa de governo comunista que deixa o povo preguiçoso e mal acostumado. Quem aqui nunca ouviu a história da família X que tem quase uma dezena de filhos só para viver de Bolsa-Família? Como se o valor miserável do benefício compensasse o sofrimento de parir e criar uma criança no meio da miséria.

E a coisa piora quando nos damos conta de que muitas dessas pessoas sequer tem um acesso a informação decente, e aí os discursos chegam difusos. De um lado, tem autoridades falando de como o vírus é perigoso, que só o isolamento social nesse momento pode mitigar a perda de vidas e que as pessoas devem ficar em casa para não colapsar o sistema de saúde, evitando assim uma tragédia maior. Em contrapartida vem o chefe de estado distorcer tudo isso com notícia falsa, propagando informações sem procedência e alegando que está tudo bem. Afinal de contas são só algumas milhares de mortes. “E daí? Quer que eu faça o que?”

Você pode se indignar com toda razão da classe média que vai correr na ciclovia do bairro, do playboy que dá um passeio de bike ou daquele semi-rico que pode colocar todo mundo da empresa para trabalhar em home office, mas prefere manter seus empregados enclausurados dentro da extensão do seu falo chamado “empresa”, com a justificativa mentirosa de que a economia não pode parar, como se o cidadão dentro de um prédio por si só afetasse alguma coisa. Com esses, acho que mais que indignação, é possível que a única linguagem que essa gente egoísta e mesquinha aprende é a violência. E quando eu digo egoísta e mesquinha, me refiro ao fato de que o isolamento não se trata de proteger a si mesmo necessariamente, mas de proteger o outro. É de empatia que estamos falando.

Agora, como a gente pode se indignar com o pobre que nesse momento está entre a cruz e a espada, ou melhor, entre a COVID-19 e a fome? Pois quando o governo negligencia o assistencialismo em um momento tão crítico, e ainda por cima endossa o discurso de que o dinheiro é mais importante que a vida, com essa balela tosca de que a economia não pode parar, o que ele está propondo é isso: morra de COVID-19 ou de fome, você escolhe.

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Cleverton Linhares

Engenheiro frustrado. Tenho vontade de falar de tudo para todo mundo, mas como ninguém me ouve, resolvi escrever qualquer coisa pra quem quiser ver.