Esporte, racismo e expressão

Se você acha que esporte nada tem a ver com política, sugiro que leia esse caso e repense a respeito.

Cleverton Linhares
6 min readJun 4, 2020
Colin Kaepernick em protesto junto com outros jogadores do San Francisco 49ers (2016, Michael Zagaris)

Esses dias ultimamente têm sido bem barulhentos. Estamos vendo a terra da “democracia” e da “liberdade” (sim, estou sendo irônico, caso não tenha percebido) pegar fogo depois de mais uma demonstração do racismo sistêmico e escancarado estadunidense. George Floyd não foi o primeiro e nem será o último, infelizmente. O que aconteceu é que, dessa vez, o caso dele aconteceu quando todo mundo no mundo todo está com os nervos à flor da pele: pandemia, recessão econômica, mais uma das infinitas crises do capitalismo deixando várias pessoas desalentadas, tudo isso somado aos sempre presentes sinais do preconceito e da desigualdade social.

No dia anterior à publicação desse texto, a cidade de New Orleans, no estado da Louisiana nos EUA, bem como o mundo da NFL, a liga de futebol americano, foram impactados com a declaração de um dos jogadores mais respeitados da atualidade.

Pra quem não conhece nada dos bastidores do esporte, Drew Brees, o quarterback do New Orleans Saints — e quarterback, você sabe, é o cara que lança a bola no futebol americano — era, até ontem, considerado uma das pessoas mais importantes da cidade. Além de ter dado uma vida nova ao time da cidade do blues, já que o New Orleans Saints era um time bem morno antes da sua chegada, Brees foi uma das figuras que ajudou na reconstrução da região após os estragos causados pelo furacão Katrina.

Brees, inclusive, já foi agraciado com o Walter Payton Man of the Year, um título que a NFL concede todo ano a algum jogador da liga que tenha realizado alguma benfeitoria ou possui alguma ação social transformadora na comunidade em que vive.

Com todo esse histórico de bom jogador e bom moço, ele sempre foi muito bem quisto não só pelos torcedores do time, como também por todos os fãs do esporte. Só que nada disso apaga o fato de que Drew Brees é um homem branco estadunidense, e quase todo sujeito com essas características possui um problema sério em seu caráter, que é dar mais valor à pátria e seus símbolos do que às vidas que de fato compõem essa pátria. E quando falamos de Estados Unidos da América, tenha certeza que estamos falando de vidas de gente preta.

No meio de tudo isso que está acontecendo, em uma entrevista ao Yahoo Finance, quando questionado sobre o fato de jogadores ajoelharem durante o hino em protesto, Drew Brees pareceu se preocupar mais com a bandeira do que como significado do protesto, que era justamente o de chamar a atenção para a violência racial que acontece no país desde sempre.

Claro que isso não ficou barato de forma alguma. Jogadores (e, obviamente simpáticos à causa) colegas de trabalho dele foram às redes sociais manifestar sua insatisfação com as declarações do quarterback. Não só eles, outros diversos jogadores manifestaram seu desagrado e reprovação quanto ao comentário feito. Até mesmo o Aaron Rodgers, quarterback do Green Bay Packers, conhecido por aí por ser um sujeito antipático, se solidarizou com aqueles que se sentiram ofendidos com as declarações de Brees.

Pra quem está perdido nessa história de ajoelhar para a bandeira: a onda de protestos antirracistas desenterrou o caso de Colin Kaepernick, do San Francisco 49ers que, durante a execução do hino nacional antes dos jogos, foi flagrado de joelhos em sinal de protesto. Essa história deve ter, pelo menos, uns cinco anos, mas suas consequências e desdobramentos ecoam até hoje.

Colin foi cortado pelo time e, mesmo sendo melhor que muitos outros jogadores da liga, apesar do declínio de rendimento à época do episódio, nenhuma liga se interessou em contrata-lo. Tempos depois, Donald Trump inflamou uma platéia no alabama, alegando que quem se ajoelha durante o hino nacional deveria ser demitido. Foi o bastante para uma onda de protesto tomar conta de toda a liga, com diversos jogadores se utilizando do mesmo ato contra a fala do presidente.

Ainda assim, Kaepernick continuou jogado pra escanteio pelas franquias da NFL.

Com a morte de George Floyd e a onda de manifestações que deixaram os EUA de cabeça para baixo, muitas pessoas têm revisitado esse caso e entendido que aquilo tudo não era apenas para autopromoção ou uma bobagem para chamar a atenção para si. A causa que ele defende até hoje é real e merece importância. Importância essa que Drew Brees não soube enxergar em sua fala infeliz. E aqui eu digo infeliz para manter a temperatura do calor do debate nesse texto baixa. Sinta-se livre para considerar o que você quiser. Desrespeitoso, racista, insensível… Toda colocação é bem vinda.

Na noite de ontem, em mais um dia de protestos, Nova Orleans fez questão de lembrar que as benfeitorias que alguém faz não são capazes de se sobrepor à insensibilidade ante a causa de uma comunidade inteira. Causa essa que está clamando pelo direito à vida e dignidade de quem sofre por preconceito e violência há alguns séculos. Em meio às palavras de ordem, as pessoas também se manifestaram contra o jogador do time da cidade.

Ontem mesmo, Brees se manifestou no instagram a respeito, com uma gigante carta de desculpas nos moldes do “precisamos ouvir melhor e aprender mais”. Claro, o estrago já estava feito. Como um filósofo de internet já disse uma vez: a vida é como tetris, seus bons atos passam, mas os erros ficam e se acumulam.

Porque eu resolvi falar desse caso? Bom, ele traz à luz duas coisas muito importantes. A primeira é que esporte nunca é só entretenimento. Atletas profissionais são pessoas públicas e, como tal, o que eles falam possui implicações muito fortes. Há muito tempo a NFL vem mostrando como as atitudes de seus jogadores têm implicações muito fortes fora de campo mesmo que não queiram. Suas palavras e atitudes reverberam na sociedade e sim, desassociar esporte de política é um erro. Aliás, em uma última análise, desassociar qualquer entretenimento de política é um erro. Basta olhar para a música, cinema, quadrinhos. Política é algo presente no nosso dia a dia e negar isso é se alienar da vida e das decisões da sociedade. Os gregos tinham um termo específico para o cidadão alienado dessa forma: “idios”. É daí inclusive que vem a palavra IDIOTA!

O segundo aspecto é uma bandeira que eu defendo há muito tempo não só nos meus textos, mas em conversas de boteco (ou pelo menos quando ainda era possível fazer isso), redes sociais e afins. Não pode existir liberdade sem responsabilidade.

Muitos acusaram aqueles que se revoltaram contra a fala do Brees de não permitir que ele seja livre para falar o que quiser e se moldar a um discurso que as pessoas querem que ele tenha. E a discussão não é sobre ele ter ou não o direito de falar o que quiser, mas sim sobre empatia com quem luta por dignidade e igualdade.

Drew Brees é livre para falar o que quiser. E lee fez uso disso. O problema não está simplesmente no fato dele querer que símbolos nacionais sejam respeitados. É a opinião e o direito dele. Eu acho que hinos, bandeiras e patriotismo são apenas instrumentos de manobra para dividir grupos de pessoas por aí, mas isso é apenas minha opinião e deve se restringir a isso. Você tem o direito e a liberdade de discordar disso e está tudo bem.

O problema aqui é: se você quer ter liberdade, precisa ter responsabilidade. Quem fala o que quer, ouve o que não quer. Ainda mais quando se trata de uma figura pública, falar o que pensa implica em arcar com as consequências disso. Brees pode querer o respeito que for aos símbolos nacionais, mas faltou a ele entender o contexto do que estava acontecendo, e que ninguém tava “desrespeitando” a bandeira, se é que houve ali algum desrespeito, de graça. Faltou empatia, e essa flata de empatia com a causa, em um momento em que todos estão revoltados com a morte covarde de um negro, também causou revolta.

Que Brees tenha aprendido a lição e todos nós tomemos consciência disso: é importante que tenhamos sim, algum grau de liberdade, sem esquecer que liberdade implica em responsabilidade. Senão isso aqui deixa de ser civilização e vira barbárie.

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Cleverton Linhares

Engenheiro frustrado. Tenho vontade de falar de tudo para todo mundo, mas como ninguém me ouve, resolvi escrever qualquer coisa pra quem quiser ver.