Negros, Quadrinhos e Representatividade

Cleverton Linhares
5 min readSep 1, 2020

Como normalmente gosto de fazer quando abordo temas onde não não é o meu lugar de fala, aqui vai uma explicação: o que eu vou falar daqui em diante não é algo que eu inventei da minha cabeça de branco. O que o leitor está prestes a encarar a seguir é produto de uma compilação das demandas da gente à minha volta que realmente é impactada por isso e têm algo a dizer: a própria gente negra.

Aliás, eu deixo inclusive um apelo: caso você, caro leitor, ainda não tenha ouvido, ou talvez tenha negligenciado, desvalorizado ou ignorado o que eles têm a dizer a respeito do tema a seguir, PARE ESSE TEXTO AGORA, VOLTE DUAS CASAS E VÁ PRIMEIRO ESCUTAR O QUE ELES TÊM A DIZER, POIS TEM MUITO MAIS VALOR DO QUE ISSO AQUI. Daí você pode voltar pra cá para nós debatermos.

Feito isso, agora podemos prosseguir.

Pantera Negra retornou ao interesse do público em geral por conta do falecimento do ator Chadwick Boseman, que encarnava o personagem no cinema. Além dele mesmo ter sido em vida uma figura vocal a respeito das demandas da comunidade afro-americana e, por consequência, da população negra mundo afora de usando de sua posição para reivindicar os direitos dessas pessoas, o próprio filme em si representou um marco na história não só do cinema blockbuster como na cultura pop como um todo ao finalmente dar aos negros o protagonismo merecido. E aqui é importante que coloquemos as coisas em seus devidos lugares para mostrar quão grandiosa é a importância do herói nesse contexto.

A posição dos heróis no panteão

Quando se abordou a questão da representatividade do rei de Wakanda como um herói que DE FATO representava os negros como protagonistas dentro do contexto dos heróis dos quadrinhos, foi comum ver muita gente BRANCA trazendo Super Choque, Lanterna Verde (e se você não conhece John Stewart, volte duas casas e pesquise sobre), Luke Cage, Homem-Aranha, como se eles estivessem no mesmo patamar do T’Chala. E não, todos eles estão em um contexto bem diferente.

Virgil Hopkins, John Stewart, Luke Cage e Miles Morales são ótimos personagens. É compreensível não gostar de um ou outro, mas convenhamos que eles são bem elaborados. Eu diria em especial o Homem-Aranha. O lance aqui é que todos habitam o lugar comum que se dá pela sua origem. São sempre o negro do subúrbio que tem o entorno cercado por gente branca e as histórias são sempre voltadas a uma crítica social. NÃO ESTÁ ERRADO, DE FORMA ALGUMA. A crítica é válida e precisa ser feita. Mas ao mesmo tempo, quando ela constantemente se repete, a sensação é de a origem do herói branco pode ser qualquer coisa, a do negro pertence a esse lugar comum, como se para eles não restasse destino a não ser o sujeito suburbano cercado pela gente branca.

É aí que vemos como Pantera Negra é maravilhoso, porque ele sai desse enfadonho lugar comum e coloca não só a pessoa, mas o povo e a cultura dos povos africanos como protagonistas e donos de seu próprio destino. Enquanto os demais são quase um estereótipo da crítica social branca, T’Chala e toda Wakanda vão um passo além de tudo isso para passar a mensagem de “você pode ser quem você quiser e seu lugar é aonde você quer estar. Se você quiser ser rei, você pode.” Coisa que nós brancos ouvimos desde o início do entretenimento e que retiramos isso dos negros, às vezes sem perceber, às vezes de propósito.

E o epicentro de eventos não é mais o mundo branco dos Estados Unidos, Europa ou seja lá o que seja. Agora é o continente africano, que é mostrado de uma forma maravilhosa como ela pode e deve ser, e talvez seria assim, não fosse a mácula da ganância européia de se achar melhor do que os outros e usar isso como forma de subjugar outros povos para sustentar seu poder e cobiça mesquinhas.

Inversão de papéis

Para quem tem o filme fresco na memória, deve se lembrar que o único sujeito branco que tem mais tempo de tela em Pantera negra é o Martin Freeman, que interpreta um agente da S.H.I.E.L.D. Existe uma graça particular na importância da participação desse personagem na trama, porque aqui é a cereja do bolo da crítica que Pantera Negra faz ao entretenimento voltado para brancos.

Quando não é o lugar comum do negro suburbano cercado de brancos tendo que lutar por seus direitos, os personagens negros costumam ser relegados ao alívio cômico. O sujeito que está ali na turma e que é sempre de onde brotam as punch lines para deixar a coisa mais cômica. E, de novo, o entorno desse cidadão é todo branco. E mais uma vez, vem a desconstrução dessa história ao inverter isso e agora colocar o branco nessa situação. E funciona perfeitamente, por sinal.

Sem abrir mão da crítica

Tudo bem, T’Chala é rei, temos uma sociedade negra muito bem estabelecida sem aquele clichê dos brancos benevolentes salvadores e Wakanda é muito mais maravilhosa do que a auto-representação dos EUA sobre si mesmos. Não significa que não há críticas na história, e muitas. O personagem de Michael B. Jordan é motivado quase que exclusivamente por elas.

A diáspora dos povos do continente africano, apartheid, segregação racial, escravidão, roubo de sua própria cultura. Tudo isso serve para impulsionar Killmonger em sua cruzada em busca do trono de Wakanda para que ele possa finalmente usar a força de seu país e unir seus irmãos mundo afora para que juntos, possam se vingar de todas as mazelas que os brancos lhes impuseram durante os séculos.

Quem tem um pingo de empatia se vê em um dilema moral ao encarar esse discurso. A princípio, é retribuir crueldade com mais crueldade, mas ao mesmo tempo não dá para negar o ressentimento e a raiva do oprimido ante o crime do opressor. Afinal, são séculos de escravidão, perseguição, preconceito e sofrimento. Já se tornou insustentável há muito tempo. Até quando suportar de forma pacifica esse tipo de situação?

Por todo esse conjunto que Pantera Negra pode e deve ser considerado um expoente da representatividade na indústria do entretenimento. Porque ele mostra o que deveríamos ter feito há muito tempo: mostrar que negros não pertencem só àquele lugar comum do imaginário da gente branca, eles podem ser heróis e heroínas, reis e rainhas, líderes, guerreiros e o que mais eles quiserem ser.

Wakanda Para Sempre!

--

--

Cleverton Linhares

Engenheiro frustrado. Tenho vontade de falar de tudo para todo mundo, mas como ninguém me ouve, resolvi escrever qualquer coisa pra quem quiser ver.